Por Pedro Doria.
31 de ago de 2016.
Apesar de inúmeras denúncias, quando o julgamento pelo Senado do impeachment do presidente Fernando Collor chegou ao fim, só havia uma acusação devidamente comprovada. Um Fiat Elba utilizado pela primeira-dama Rosane Collor fora pago com o cheque de uma conta fantasma controlada pelo ex-tesoureiro de campanha, Paulo Cesar Farias.
Para que o impeachment termine com condenação, é preciso enquadrar o presidente da República em um dos itens listados pela lei 1.079, promulgada em 10 de abril de 1950. É ela que determina quais os crimes de responsabilidade cometidos pelo chefe do Executivo.
Collor foi enquadrado em artigos frágeis:
O artigo 8º, inciso 7: “permitir, de forma expressa ou tácita, a infração de lei federal de ordem pública” e
O artigo 9º, inciso 7: “Proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”.
Quebra de decoro é, no fim das contas, tudo aquilo que os parlamentares concordarem estar em desacordo com o comportamento esperado. O atentado à ordem pública vem de ter violado as normas de conduta dos servidores da União. Collor se beneficiou do poder inerente ao cargo que ocupava.
O enquadramento é frágil porque, no fim das contas, deputados e senadores, se assim o desejarem, poderão encontrar motivos para enquadrar qualquer presidente em ambos os artigos.
Hoje, o Senado Federal decidiu pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff. Hoje, história não é passado. Ela está em curso. O impeachment de Collor não foi polêmico. O de Dilma, é.
O artigo da lei 1.079/50 no qual ela foi enquadrada não existia no tempo dele. É um artigo que entrou, através da Lei de Responsabilidade Fiscal, no ano 2000.
Artigo 10, inciso 6: “Ordenar ou autorizar a abertura de crédito em desacordo com os limites estabelecidos pelo Senado Federal, sem fundamento na lei orçamentária ou na de crédito adicional ou com inobservância de prescrição legal”.
São as pedaladas fiscais.
O governo deposita, mensalmente, um valor aproximado em bancos públicos como Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal. É para que sejam pagas pensões, bolsas e outros tantos benefícios. Às vezes ocorre de faltar dinheiro. Entre 2014 e 15, o governo Dilma deixou acumular este buraco por vários meses, chegando à cifra total de R$ 40 bilhões.
Fez isso por motivo político.
A contabilidade da União e a dos bancos públicos segue regras distintas. Assim, nos balanços, durante um período o valor que ainda não havia sido pago aos bancos já era documentado como sanado. E o dinheiro que não saíra dos cofres do governo não apareceu como ausente. Tudo estritamente legal. E, principalmente no caso de 2014, ano eleitoral, fez parecer que a economia do país estava melhor do que a realidade.
O Tribunal de Contas da União, ao avaliar a prática, decidiu que estava configurada uma operação de crédito. Que, de forma disfarçada, o governo tomou dinheiro emprestado aos bancos públicos. Estaria, assim, enquadrado num crime de responsabilidade passível de impeachment.
É uma interpretação.
A lei é de 2000. A defesa da presidente Dilma Rousseff argumenta que prática similar ocorreu nos últimos anos do governo Fernando Henrique, durante todo o período Lula e nos primeiros anos de Dilma. O TCU jamais havia feito qualquer questionamento. Tem, dizem os defensores, o direito de mudar sua interpretação. Mas, se há mudança, não pode condenar retroativamente.
O que os acusadores dizem, porém, é que as manobras de 2014 e 2015 são diferentes. O volume da dívida acumulada foi muito maior do que jamais fora feito e o Executivo demorou muito além do razoável para cobrir o buraco.
O governo, assim, aproveitou-se do fato de controlar os bancos públicos para, em momentos que politicamente o interessavam, disfarçar a real situação das contas públicas. Justamente a prática que a Lei de Responsabilidade Fiscal coíbe.
A defesa tem contra-argumento. O problema, o TCU parece definir, não é a prática, mas o volume e o prazo. Se havia teto, era preciso definir antes.
A acusação responde, em essência, que o governo se faz de esperto. Manipulou as contas aproveitando-se do que percebia como brecha na lei.
Impeachment é um bicho raro. É um julgamento no qual os juízes são políticos, não magistrados. É um julgamento no qual quem interpreta a lei é o poder mais político dentre os três. O Legislativo. Juízes, na dúvida, inclinam-se a favor do réu.
A polêmica não é difícil de compreender. É uma matéria de interpretação que pode ser argumentada de uma forma ou de outra. A pena, porém, não é pequena. É imensa: a perda do mandato de presidente da República. Entre uma interpretação possível e a outra, a consequência é imensa.
Paulo Brossard, que escreveu um estudo memorável sobre o impeachment, defendia que o texto da Constituição dava margem à polêmica. Para ele, “crime de responsabilidade” deveria ser substituído por “infrações políticas”. Assim ficaria claro o que o impeachment de fato é. Um julgamento político.
Em espanhol, aliás, chama-se juicio politico. Quando se torna incapaz de negociar ao menos um terço dos votos de uma das duas casas parlamentares, qualquer presidente da República se expõe à perda do próprio mandato. Ele perdeu, em essência, sustentação no Legislativo.
Foi o que ocorreu com Dilma Rousseff. Ela perdeu a capacidade de se sustentar politicamente e, assim, perdeu o mandato. A interpretação de que houve crime de responsabilidade é legítima. A interpretação de que não houve, idem. O que define é a política.
Mas Dilma é diferente de Collor. Porque, diferentemente de Collor, que não tinha um partido de verdade, Dilma tem. E o PT não perdeu por completo sua base de apoio na sociedade. Ela diminuiu incrivelmente por conta dos escândalos de corrupção e da terrível gestão econômica. Só que ela existe. E política, como já antecipava Alexander Hamilton ao inventar o impeachment, desperta paixões.
Seus partidários não se conformam. Percebem que, no Judiciário, talvez o resultado fosse distinto. É possível. Mas, no Senado, o julgamento é inevitavelmente político. O fato de ser político não o torna inconstitucional. Pelo contrário: é a própria Constituição, ao escolher Câmara e Senado para o processo, que determina um julgamento político.
Dizem que a história condenará os que cassaram Dilma Rousseff.
É impossível dizer como a história lerá nosso tempo. Mas é possível afirmar que a história não verá o impeachment apenas pelas pedaladas. Quando historiadores se debruçarem sobre este 31 de agosto de 2016, não vão isolar o impeachment por si e apenas. Observarão o contexto. E o contexto, no mínimo, começa em julho de 2013. Inclui a inacreditável Operação Lava Jato, esta sim realmente inédita no Brasil. Perceberão a crise econômica que se estabeleceu, tomarão nota do nível de agressividade no discurso político da campanha presidencial de 2014. Não se esquecerão que apenas três milhões de votos separaram Dilma de seu adversário no segundo turno, Aécio Neves, indicando um país polarizado, dividido, rachado. Perceberão que não foram poucos os políticos, de ambos os lados, a investirem para que as divisões se acentuassem.
O impeachment de Dilma é sintoma da crise de uma maneira de fazer política que derrete perante a pressão popular.
E os indícios são de que este período histórico não terminará com o impeachment. Porque não faltam políticos dispostos a aprofundar as divisões. De ambos os lados.
Pedro Doria é jornalista. Seus últimos livros tratam de história. “Tenentes, A Guerra Civil Brasileira”, narra como se fosse um thriller os acontecimentos que levaram ao fim da República Velha, na década de 1920, e mostra o surgimento da geração de militares que tomou o poder em 1964. 1565 conta a invenção do sudeste brasileiro e, 1789, a verdadeira história da Inconfidência. Assine, gratuitamente, sua newsletter semanal sobre história brasileira. Pedro também escreve sobre o impacto da tecnologia, no Globo e no Estado de S. Paulo, às sextas-feiras, além de comentar sobre o tema na CBN quartas e domingos.
Fonte: LinkedIn.