Leia seleção de colunas marcantes de Carlos Heitor Cony na Folha
06/01/2018
ABr
De lá até aqui, exercitou sua pena de cronistas nos mais variados temas:
a política, a lembrança dos amigos, a religião e a simples observação
lírica do mundo. Mila, sua cadela cuja morte o fez voltar a se dedicar à
literatura —Cony dizia escrever para poder suportar os gemidos dela—
também foi tema de uma crônica apaixonada.
Boa leitura!
Veja crônica do autor selecionada por mim... sobre Jornalismo e Literatura.
O pintor que foi jornalista e escritor
23 de maio de 2003
Nota da Redação: Cony escreveu a coluna a seguir em resposta a uma mensagem enviada pelo jornalista Matheus Pichonelli, hoje autor de um blog no UOL.
Em seu relato: "Uma vez pedi uma entrevista para falar sobre a relação
entre jornalismo e literatura. Ele disse que responderia as perguntas na
coluna de sexta, na 'Ilustrada'. Foi uma das melhores coisas que li na
vida —e talvez o maior presente para quem começava a se aventurar nas
letras, entre tropeços, soluços e a vaidade de conversar com um ídolo.
Uma das perguntas mais recorrentes que me fazem, em cartas, e-mails e
pessoalmente, nos encontros promovidos com estudantes, é sobre a relação
entre a literatura e o jornalismo —um tema que, se não me engano, já
abordei perifericamente em outros artigos, pois preocupa muita gente.
Há motivos para a curiosidade. Afinal, tanto o jornalista como o autor
literário utilizam basicamente o mesmo instrumento, que é o conjunto de
letras que forma a palavra e o conjunto de palavras que forma a frase.
Contudo, se o instrumento é o mesmo, o uso e o modo são diferentes, até
mesmo antagônicos. Há flores que enfeitam a vida, há flores que enfeitam
a morte —dizia o poeta. E sinos que alegram as manhãs do Senhor são os
mesmos que dobram em finados.
Com perdão da imagem acima, a flor e o sino, a palavra é material
plástico demais, serve para tudo e para nada. O jornalista dela se
utiliza, primariamente, para dar uma informação ou uma opinião. A
previsão do tempo, a cotação do dólar, o cachorro que mordeu a criança, o
político que vai mudar de partido, o ator que foi atropelado, o filme
que fulano está fazendo, as alterações no Imposto de Renda, o novo
vestido que fulana vai usar —tudo isso é informação e precisa de uma
técnica e de um espaço próprios para ser avaliada pelos editores e
transmitida ao leitor.
No jornalismo atual, sem os vícios literários de outros tempos, o texto
tem de ser profissional, obedecendo a critérios próprios. Daí que todos
os textos acabam se parecendo. E, quanto mais parecidos, melhores são,
pois o que fica importando é o conteúdo, o dólar em alta ou em baixa, o
político que faz isso ou aquilo, o filme que custará tanto e será bom ou
mau.
Usando o mesmo material, a literatura dispensa qualquer contaminação com
a realidade, com o sonho, com as regras, com a utilidade. Como disse
Sartre, a arte é uma generosidade inútil. Se alguém se beneficia ou
lucra com ela, tudo bem. É um subproduto. Sua finalidade é outra,
despreza a informação -chega mesmo a informar errado propositadamente— e
não se obriga a emitir qualquer opinião. Seu objetivo é outro: o clima,
o subjacente, o que não é dito e muitas vezes nem chega a ser
insinuado, mas tem de ser adivinhado pelo usuário.
Paralela a essa distinção de uso e finalidade, jornalismo e literatura
podem se conflitar e ajudar, dependendo de diversas variantes. O mais
comum é considerar o jornalismo um modo de fazer literatura ou
subordinar a literatura a um modo do jornalismo. Em ambos os casos, o
produto é híbrido, não chega a ser boa literatura nem bom jornalismo.
Cada macaco no seu galho —acho que o velho ditado nasceu de um escritor
que fazia jornalismo ou o contrário, de um jornalista que tentava ser
escritor.
Limitando a questão ao Brasil, sua literatura e seu jornalismo, é
impressionante (e confuso) o número daqueles que exerceram, eventual ou
permanentemente, as duas funções. Bem verdade que, antigamente,
jornalista era todo aquele que escrevia em jornal: artigos, ensaios,
comentários, resenhas, crônicas, críticas e reportagens. Até hoje,
quando se diz que fulano é escritor e jornalista, a classificação de
jornalista fica por conta das colaborações feitas nos jornais. Machado
de Assis e Carlos Drummond de Andrade sempre escreveram para jornais,
mas seriam incapazes de fazer um lide, de condensar num título o
importante da informação ou da opinião.
Na realidade, como escritores, eles se lixavam para a informação e a
opinião. O que lhes importava era a visão de mundo que haviam criado, o
gosto ou desgosto da condição humana em sua essência, e não em seus
acidentes factuais. Mas, para todos os efeitos, eram escritores e
jornalistas.
Como em outras partes ao longo da história e da geografia, o ofício de
escritor geralmente não dá para o sustento básico de cada um. Swift foi
juiz, Tolstói, fazendeiro no fim e soldado no início, Kafka, bancário,
Eça, diplomata, Machado de Assis, funcionário. Nada de mais que seja
grande o número daqueles que, não sendo magistrados, fazendeiros,
bancários, diplomatas e funcionários, apelem para o ofício de jornalista
pelas afinidades periféricas da função: lidam com as palavras, formam
frases e têm a impressão de formar opinião, uma opinião setorizada,
sujeita a chuvas e trovoadas da circunstância e do sistema de poder em
cada redação.
Já o escritor, mesmo que seja jornalista profissionalizado, tem o
recurso usado por Goya, que não era jornalista nem escritor, mas pintor.
Como artista contratado pelo rei da Espanha, ele pintava tudo o que lhe
pediam, retratava o soberano, a rainha, os príncipes, os folguedos da
corte, as grandes damas da época. Fora de suas funções oficiais, ele
conseguia expressar seu mundo interior, sua visão goyesca da vida —e lá
estão, na Quinta del Sordo, seus dibujos famosos, Saturno devorando seu
filho, o sonho da razão produzindo monstros.
Nos dois modos, ele usou o mesmo material: o desenho, a cor, o quadro. E em ambos deixou a lava do vulcão que o consumia.
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