Descanse em Paz, Cony! Crônica sobre Jornalismo e Literatura.

Leia seleção de colunas marcantes de Carlos Heitor Cony na Folha

06/01/2018

Carlos Heitor Cony, morto na noite desta sexta-feira (5), escreveu na Folha durante quase 30 anos. Sua primeira coluna saiu em 1993. 




ABr


De lá até aqui, exercitou sua pena de cronistas nos mais variados temas: a política, a lembrança dos amigos, a religião e a simples observação lírica do mundo. Mila, sua cadela cuja morte o fez voltar a se dedicar à literatura —Cony dizia escrever para poder suportar os gemidos dela— também foi tema de uma crônica apaixonada.

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Boa leitura!

Veja crônica do autor selecionada por mim... sobre Jornalismo e Literatura.

O pintor que foi jornalista e escritor
 
23 de maio de 2003
 
Nota da Redação: Cony escreveu a coluna a seguir em resposta a uma mensagem enviada pelo jornalista Matheus Pichonelli, hoje autor de um blog no UOL. Em seu relato: "Uma vez pedi uma entrevista para falar sobre a relação entre jornalismo e literatura. Ele disse que responderia as perguntas na coluna de sexta, na 'Ilustrada'. Foi uma das melhores coisas que li na vida —e talvez o maior presente para quem começava a se aventurar nas letras, entre tropeços, soluços e a vaidade de conversar com um ídolo.

Uma das perguntas mais recorrentes que me fazem, em cartas, e-mails e pessoalmente, nos encontros promovidos com estudantes, é sobre a relação entre a literatura e o jornalismo —um tema que, se não me engano, já abordei perifericamente em outros artigos, pois preocupa muita gente.

 Há motivos para a curiosidade. Afinal, tanto o jornalista como o autor literário utilizam basicamente o mesmo instrumento, que é o conjunto de letras que forma a palavra e o conjunto de palavras que forma a frase. Contudo, se o instrumento é o mesmo, o uso e o modo são diferentes, até mesmo antagônicos. Há flores que enfeitam a vida, há flores que enfeitam a morte —dizia o poeta. E sinos que alegram as manhãs do Senhor são os mesmos que dobram em finados.

Com perdão da imagem acima, a flor e o sino, a palavra é material plástico demais, serve para tudo e para nada. O jornalista dela se utiliza, primariamente, para dar uma informação ou uma opinião. A previsão do tempo, a cotação do dólar, o cachorro que mordeu a criança, o político que vai mudar de partido, o ator que foi atropelado, o filme que fulano está fazendo, as alterações no Imposto de Renda, o novo vestido que fulana vai usar —tudo isso é informação e precisa de uma técnica e de um espaço próprios para ser avaliada pelos editores e transmitida ao leitor.

No jornalismo atual, sem os vícios literários de outros tempos, o texto tem de ser profissional, obedecendo a critérios próprios. Daí que todos os textos acabam se parecendo. E, quanto mais parecidos, melhores são, pois o que fica importando é o conteúdo, o dólar em alta ou em baixa, o político que faz isso ou aquilo, o filme que custará tanto e será bom ou mau.

Usando o mesmo material, a literatura dispensa qualquer contaminação com a realidade, com o sonho, com as regras, com a utilidade. Como disse Sartre, a arte é uma generosidade inútil. Se alguém se beneficia ou lucra com ela, tudo bem. É um subproduto. Sua finalidade é outra, despreza a informação -chega mesmo a informar errado propositadamente— e não se obriga a emitir qualquer opinião. Seu objetivo é outro: o clima, o subjacente, o que não é dito e muitas vezes nem chega a ser insinuado, mas tem de ser adivinhado pelo usuário.

Paralela a essa distinção de uso e finalidade, jornalismo e literatura podem se conflitar e ajudar, dependendo de diversas variantes. O mais comum é considerar o jornalismo um modo de fazer literatura ou subordinar a literatura a um modo do jornalismo. Em ambos os casos, o produto é híbrido, não chega a ser boa literatura nem bom jornalismo. Cada macaco no seu galho —acho que o velho ditado nasceu de um escritor que fazia jornalismo ou o contrário, de um jornalista que tentava ser escritor.

Limitando a questão ao Brasil, sua literatura e seu jornalismo, é impressionante (e confuso) o número daqueles que exerceram, eventual ou permanentemente, as duas funções. Bem verdade que, antigamente, jornalista era todo aquele que escrevia em jornal: artigos, ensaios, comentários, resenhas, crônicas, críticas e reportagens. Até hoje, quando se diz que fulano é escritor e jornalista, a classificação de jornalista fica por conta das colaborações feitas nos jornais. Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade sempre escreveram para jornais, mas seriam incapazes de fazer um lide, de condensar num título o importante da informação ou da opinião.

Na realidade, como escritores, eles se lixavam para a informação e a opinião. O que lhes importava era a visão de mundo que haviam criado, o gosto ou desgosto da condição humana em sua essência, e não em seus acidentes factuais. Mas, para todos os efeitos, eram escritores e jornalistas.

Como em outras partes ao longo da história e da geografia, o ofício de escritor geralmente não dá para o sustento básico de cada um. Swift foi juiz, Tolstói, fazendeiro no fim e soldado no início, Kafka, bancário, Eça, diplomata, Machado de Assis, funcionário. Nada de mais que seja grande o número daqueles que, não sendo magistrados, fazendeiros, bancários, diplomatas e funcionários, apelem para o ofício de jornalista pelas afinidades periféricas da função: lidam com as palavras, formam frases e têm a impressão de formar opinião, uma opinião setorizada, sujeita a chuvas e trovoadas da circunstância e do sistema de poder em cada redação.

Já o escritor, mesmo que seja jornalista profissionalizado, tem o recurso usado por Goya, que não era jornalista nem escritor, mas pintor. Como artista contratado pelo rei da Espanha, ele pintava tudo o que lhe pediam, retratava o soberano, a rainha, os príncipes, os folguedos da corte, as grandes damas da época. Fora de suas funções oficiais, ele conseguia expressar seu mundo interior, sua visão goyesca da vida —e lá estão, na Quinta del Sordo, seus dibujos famosos, Saturno devorando seu filho, o sonho da razão produzindo monstros.

Nos dois modos, ele usou o mesmo material: o desenho, a cor, o quadro. E em ambos deixou a lava do vulcão que o consumia.

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